A autodestruição do Carioca.
Foto: Gilvan de Souza / Flamengo |
ESPORTE FINAL: Pergunte a um torcedor de um clube carioca sobre uma memória que lhe arranque um sorriso em segundos. Logo surgirá um tricolor narrando a epopeia da barriga de Renato, o Gaúcho. Sorridente, o rubro-negro puxará de primeira a falta de Petkovic aos 43 minutos do segundo tempo contra o Vasco. O vascaíno, por sua vez, rebate com o cruzamento de letra de Léo Lima para o gol de (quem mesmo?) Souza. O botafoguense, com um sorriso debochado, descreve a cavadinha de Loco Abreu diante do Flamengo em um Maracanã lotado. Histórias de vida, histórias de torcedor, histórias de um Estadual. Um campeonato que parece não respeitar as próprias memórias e impede o surgimento de novas ao trilhar o caminho da autodestruição.
É inegável que a importância dos Estaduais no passado era maior. Bem maior. Nas décadas de 70 e 80 talvez fosse mais importante conquistá-los do que levantar um Brasileiro ou uma Libertadores. Mas o mundo, não só o da bola, mudou. As distâncias encurtaram. Um rubro-negro provocar um corintiano em tempos de redes sociais é quase o mesmo do que cutucar um vascaíno no passado. O Estadual deve encolher no calendário e fazer dignamente a passagem para torneios que amadureceram e, hoje, têm preferência entre os torcedores. O Estadual do Rio, o Carioca, no entanto prefere o embate que o leva à autodestruição.
Até 2010, o Campeonato Carioca contava com grande badalação. Curiosamente, o último ano do velho Maracanã. A fórmula estabelecida em 2004 era decantada não apenas pelos torcedores do Rio. Todo o Brasil sabia: dois grupos, dois turnos, a Taça Guanabara e a Taça Rio. Em caso de campeões distintos, ambos lotariam o Maracanã nas partidas decisivas para definir o dono da faixa. Enquanto outros Estaduais contavam com fórmula mais arrastada, no Rio de Janeiro dois clubes, geralmente, já tinham levantado taças de turno e justicado a existência do torneio.
A disputa pelo poder político pavimentou o caminho da destruição. O número de participantes inchou de 12 para 16. Antes concentrados em poucos times pequenos, os jogadores com um mínimo de competitividade se espalharam. Viraram brilharecos solitários em vez de um conjunto que incomodava como fizeram Americano, Volta Redonda, Cabofriense, Resende. O Carioca caiu no óbvio dos quatro grandes, a chance de surpresa diminuiu, o nível técnico também. O interesse, naturalmente, minguou. A crise é de identidade. O caminho, do fim.
Acrescente nessa receita do caos o embate entre clubes, destacamente Flamengo e Fluminense, contra chefões do futebol local, como Eurico Miranda, presidente do Vasco, e Rubens Lopes, presidente da Ferj. O trabalho não é pela recuperação de uma competição que, atualmente, é extremamente deficitária. As partidas dão prejuízo e contribuem para arranhar a imagem dos clubes, com distorções como o caso de o Flamengo, dono da maior torcida nacional, jogar para 300 pessoas numa noite em Volta Redonda ou Jefferson, goleiro do Botafogo, utilizar um esparadrapo no lugar de número na camisa. Em 2016, a fórmula composta por três confusas fases e jogos sem grande interesse, contribuiu para levar o Estadual do Rio a um ponto emblemático. Sem acerto entre as partes, clássicos pelo Campeonato Carioca, como o charmoso Fla-Flu, são levados para São Paulo ou Brasília. Irreal. E enche de argumentos quem questiona a existência da competição.
Extinguir o Carioca seria pouco inteligente. Não se pode jogar fora o passado. As memórias estão vivas e há espaço para novas. É justamente em um Estadual que a democratização da vitória atinge os torcedores. O cultivo da hábito da arquibancada pode ser ali encorajado. Seja no Maracanã, na Rua Bariri ou em Conselheiro Galvão, o torcedor do grande clube que tem até grandes dificuldades em nível nacional pode ali comemorar vitórias, uma volta olímpica, uma taça. Vale pouco? Não, vale muito. Como dizer a um moleque de dez anos que foi a vários jogos do time e comemorou o título que aquilo não vale nada? Claro que vale. Mas com disputa de poder, jogos deficitários, clubes pequenos a pão e água, fórmula longa e desgastante, o interesse pode se dissipar. É o que ocorre com o Carioca. Ainda há espaço, mesmo que em dois meses de disputa no modelo de Copa das Confederações, com dois grupos, semifinal e final. Maracanã cheio. Um esquenta para o restante da temporada.
Clubes e, principalmente, Federação deveriam levantar a bandeira branca e pedir um tempo. Sentar em uma mesa e repensar. Fórmula, estrutura, divisão de cotas, legitimidade, atrativos para o torcedor. Ainda há tempo de impedir a autodestruição. E permitir que Gol de Barriga, Cavada do Loco Abreu, Letra do Léo Lima, Gol do Pet tenham sequências dignas de arrancar um sorriso em segundos do torcedor.
Pedro Henrique Torre