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quarta-feira, 23 outubro, 2024

O presidente vai lá e crau.

Todos os craques ambicionariam jogar no Flamengo. Todos os agentes escolheriam o Flamengo para abrigar seus contratados.
14 de maio de 2016
Foto: Divulgação

REPÚBLICA PAZ E AMOR: Essa briga entre pagar contas e ganhar títulos não é de hoje.

Lembro de um grande presidente que o Fluminense teve, Francisco Horta – tão grande que mereceu homenagem musical do rubro-nigérrimo Jorge Benjor –, em acalorado debate numa dessas resenhas dominicais com um dos seus sucessores (Sílvio Vasconcelos ou Sílvio Kelly dos Santos, não sei). Para tirar o foco de recentes fracassos do time, o presidente da vez sacava balanços, documentos e registros contábeis de uma pasta de couro e os sacudia nervosamente. Esperto toda vida, a ponto de convencer os dirigentes do Flamengo de que era um negócio justo trocar Renato, Rodrigues Neto e Doval por Roberto, Toninho e Zé Roberto, Horta ironizava: “Presidente, na próxima vez não traga só a papelada: traga também os ídolos, as vitórias e os títulos.”

Trata-se, como se vê, de embate antigo.

Entretanto, a atual diretoria rubro-negra foi capaz de nos convencer que essas duas coisas não eram excludentes, pelo contrário: as contas em dia, as dívidas pagas com disciplina e a contabilidade limpa nos levariam a um mundo de sonhos e sucessivos triunfos. Todos os craques ambicionariam jogar no Flamengo. Todos os agentes escolheriam o Flamengo para abrigar seus contratados. Seríamos poderosos, vitoriosos, temidos.

Acreditamos.

Em janeiro de 1986, o índice anual da inflação brasileira bateu na marca de 250,23%. Diante do caos, o governo de José Sarney lançou o Plano Cruzado, que entre outros atos congelava todos os preços e em pouco tempo faria de Dilson Funaro o ministro da Fazenda mais popular da nossa história. Só que, como parece acontecer com Eduardo Bandeira de Mello, Funaro se apaixonou pela própria popularidade. Diz-se que em certa reunião ministerial, diante da necessidade de mudar os rumos do plano e pôr em prática o que os economistas chamam de remédios amargos, a imprensa classifica como medidas impopulares e nós já aprendemos que é sempre pau no nosso rabo, Dilson Funaro bateu no peito e garantiu que tudo se resolveria com um pronunciamento dele em cadeia nacional. Funaro teria dito: “Deixa comigo. Eu vou lá pra tevê e crau!”

Toda vez que nossa defesa comete erros grotescos, que nosso meio-campo gira com a bola pra lá e pra cá sem ter o que fazer, pois os atacantes permanecem alheios e estáticos como se fizessem parte de um time de totó, e que vamos sair de campo com mais uma piaba no lombo, sabemos que logo o presidente aparecerá na mídia com o recorrente lero-lero.

As dívidas sendo pagas. O balanço. O prêmio concedido pela BrSM. A transparência. A responsabilidade.

Não abrimos mão de nada disso, meu presidente, mas, e as vitórias? E o time que, se ainda não o tão desejado, pelo menos não nos afronte? E os títulos, meu presidente, os títulos?

Bastaria um pingo de autocrítica para perceber que as coisas não estão funcionando. Se não temos cem milhões de euros para comprar o Gareth Bale – por incrível que pareça, foi isso que o Real Madrid pagou por ele – e só há em caixa seis milhões de reais para contratar um zagueiro, que venha o melhor zagueiro que seis milhões de reais são capazes de trazer. Competência para montar o elenco talvez seja o mais importante de todos os quesitos que compõem o conceito de modernidade na administração de um clube. E contratações com precisão cirúrgica são, quase sempre, o segredo das grandes conquistas.

O maior time que o Flamengo já teve, com uma penca de jogadores extraordinários vindos da base, começou a tomar forma quando trouxemos Carpegiani, Cláudio Adão e, um pouco depois, o goleiro Raul. Mas nem precisa tanto. Nenhum dos dois era craque, mas a chegada de Álvaro e Maldonado, durante o Brasileiro de 2009, fez com que nossa defesa deixasse de ser uma peneira e criou a solidez necessária para que Adriano e Petkovic pudessem brilhar.

E agora, presidente, quando estávamos certos de que nunca mais nos misturaríamos ao lado sombrio da força, vêm as pouco convincentes explicações para a aceitação do convite feito pela CBF.

Tenho o costume de, aqui em meus posts, zapear por todas as variantes possíveis, o que me faz não descartar a possibilidade de que Eduardo Bandeira de Mello queira dar uma tacada estratégica. Como passamos a suspeitar desde a última eleição, tudo leva a crer que o nosso presidente tenha se embriagado com o poder e com os justos elogios ao saneamento financeiro – o que chega a ser compreensível. Mas não considero de todo absurdo acreditar que Bandeira de Mello esteja empenhado em livrar o clube dos estranhos vícios da arbitragem brasileira que, na dúvida, marca tudo contra os desafetos da CBF e a favor dos aliados.

Não esqueçamos: nosso Deus já declarou que, quando os líderes daquele elenco espetacular perceberam que o time tinha bola para glórias nunca antes alcançadas, eles se reuniram com a diretoria para fazer um pedido: que se realizasse um trabalho, nos bastidores, para não deixar o Flamengo ser prejudicado. Ninguém pleiteava antiesportivos auxílios de arbitragens, e sim a certeza de imparcialidade. Isto obtido, o resto a rapaziada garantia.

Quem acompanha o RP&A sabe que não gosto de reclamar de juízes ou bandeirinhas, mas não dá para contrariar os fatos. No Campeonato Brasileiro do ano passado nosso time foi uma decepção, uma tristeza, mas erros de arbitragem nos ajudaram a perder para Avaí, Figueirense, Palmeiras, Fluminense, Vasco, Atlético Mineiro e Cruzeiro. Equívocos a nosso favor, que eu me lembre, só nas vitórias sobre Internacional e Fluminense. Sou obrigado a confessar que não aposto um real nesse argumento da suposta estratégia de Bandeira de Mello, mas não custa conceder-lhe o benefício da dúvida. Veremos a partir de hoje à tarde, quando começa nossa participação na mais importante competição do futebol brasileiro e algumas coisas serão postas em cheque. A saber:

Se o presidente andou ou não articulando para que não haja tantos erros contra e tão poucos a favor; ou se ele, simplesmente, não pode mais ver cavalo encilhado que pula em cima.

Se o time estava aguardando a hora certa de explodir e, ignorando a inexistência de uma casa para chamar de sua, fará um grande campeonato; ou se continuaremos nos enchendo de vergonha semana após semana.

Se Muricy logrará o que só conseguimos duas vezes nos últimos dez anos: estrear no campeonato com vitória; ou se voltaremos a ouvir o singelo argumento de que uma hora dessas a bola entra e a coisa vai.

Se teremos um time decente em campo, ganhando, empatando ou perdendo quando tiver de ganhar, empatar ou perder, mas sempre honrando o manto; ou se iremos dormir com a certeza de que, no dia seguinte, Eduardo Bandeira de Mello vai novamente para a mídia e crau.

Jorge Murtinho

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